Viagens insólitas
De Arthur Clarke a Philip K. Dick, descubra aqui quem escreveu as melhores histórias que atravessam as fronteiras do tempo e do espaço
por Ulisses Capozzoli


A guerra dos mundos, na ilustração do brasileiro Alvim Corrêa para a edição belga do livro de Wells; o próprio autor aprovou as imagens





























Se você quer embarcar no universo da ficção científica, mas ainda não encontrou a porta de entrada, aqui vai uma sugestão: comece por obras e autores mais conhecidos e logo se dará conta da infinidade de escolhas que tem pela frente.

Talvez a descoberta que você esteja para fazer é que não bastam as sugestões e recomendações de resenhas literárias. Isso faz com que muitas das listas feitas por escritores e críticos – quanto ao que supostamente existe de melhor – não passem de referência. Úteis, é verdade, mas nenhum guia de campo é capaz de substituir a descoberta pessoal.

As seções de ficção científica em livrarias de países como os Estados Unidos e a França, para citar dois exemplos, são a demonstração mais demolidora do descompasso brasileiro nesse segmento que Ray Bradbury, com certa irreverência, classificou de corrente principal, em vez de mero tributário, no rio largo da literatura.

O crítico Fausto Cunha, também autor – certamente você encontrará As noites marcianas em um sebo –, foi dos mais empenhados na consolidação da ficção científica no Brasil, mas sua morte interrompeu essa tarefa que continua aquém das nossas necessidades, mesmo com alguma ampliação, mais recentemente.


2001 – uma odisséia no espaço, de Stanley Kubrick, clássico inspirado em conto de Arthur Clarke

















Cunha escreveu, numa longa introdução a No mundo da ficção científica (Summus), de L. David Allen – “A ficção científica no Brasil, um planeta quase desabitado” – que esse filão, “a exemplo da ficção policial e de mistério, é um gênero tipicamente anglo-americano. Quem percorre catálogos, revistas e livrarias observa que os autores americanos e ingleses respondem por 90% ou mais da produção publicada nessas áreas”.

Pelo menos dois trabalhos recentes sugerem alguma ampliação da ficção científica no Brasil. Um deles é Ficção científica, fantasia e horror no Brasil – 1875/1950 (Editora UFMG), projeto de iniciação científica posteriormente publicado como livro por Roberto de Sousa Causo, em 2003. Significativo também é que a iniciação científica tenha sido custeada com bolsa concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), coisa que nem o beneficiado por ela acreditava possível. Causo diz que um desses pareceristas anônimos, capazes de romper com certo tradicionalismo do que pode e deve ser beneficiado com recursos públicos, foi fundamental para a concessão da bolsa que resultou no livro.

Outra abordagem foi feita pela pesquisadora americana Elizabeth Ginway, Ficção científica brasileira: mitos culturais e nacionalidades no país do futuro, e publicada aqui pela Editora Devir este ano. Ao contrário de Causo – também o tradutor de Ginway para o português –, ela se restringe aos últimos 60 anos, cobrindo o que ficou conhecido como “Geração GRD”, formada pelo grupo estimulado pelo editor Gumercindo Rocha Dórea, que publicou também As noites marcianas, de Fausto Cunha.

Evidentemente, todo o levantamento feito tanto por Fausto Cunha quanto por Roberto Causo e Elizabeth Ginway mereceria considerações. Mas como a intenção, aqui, é sugerir algumas indicações iniciais, melhor passarmos rapidamente a elas. Para começar é preciso dizer que mesmo os mais desinteressados leitores de ficção científica conhecem Arthur Charles Clarke, autor do conto “A sentinela”, que deu origem ao clássico 2001, uma odisséia no espaço, levado para o cinema sob direção de Stanley Kubrick.

Cena de Blade Runner, dirigido por Ridley Scott em 1982; filme é baseado em livro de Philip K. Dick

















O que ler de Arthur Clarke? Esse é o primeiro desafio em se tratando de um autor tão prolífico. De qualquer maneira, ao menos uma obra pode ser estimulante: A sonda do tempo, uma coletânea de contos que ele próprio organizou e de que participa com “Respire fundo”. Essa reunião do que Arthur Clarke considera o melhor da ficção científica mundial foi lançada no Brasil pela Nova Fronteira em 1983. Tem a vantagem de permitir não só um primeiro contato direto com Arthur Clarke como provar a nata da ficção científica internacional, caso de Robert A. Heinlein, Murray Leinster, Theodore L. Thomas, Robert Silverberg, James H. Schmitz, Cyril Kornbluth, Philip Latham, Jack Vance, Julien Huxley e o conhecidís¬simo Isaac Asimov, sem dúvida o mais produtivo de todos.

Por essa lista é possível concordar com Fausto Cunha sobre o fato de a ficção científica ser, na realidade, um gênero tipicamente anglo-americano, ainda que o primeiro escritor desse gênero tenha sido um francês, Júlio Verne, autor de Viagem ao redor da Lua.

Na coletânea de Arthur Clarke, atente especialmente para dois contos: “Meteorologia”, de Theodore L. Thomas, e “Cibernética”, de Murray Leinster. Thomas, nada conhecido por aqui, é um bem-sucedido químico e advogado de patentes que já escreveu sob o pseudônimo de Leo¬nard Lockhard. Murray Leinster, pseudônimo de Will F. Jenkins, tem vários títulos publicados no Brasil desde 1917.

Na antologia de Arthur Clarke, surpreendentemente, não aparece Philip K. Dick. O fato é que Philip K. Dick é absolutamente imprescindível e só ele renderia um volume completo de considerações. No total, escreveu pelo menos 44 romances – 36 deles de ficção científica – 121 contos e uma biografia. Foi precursor do gênero cyberpunk que funde rock, quadrinhos, prosa pós-moderna e narrativa policial, tudo isso misturado a temas científicos. Certamente sua obra mais conhecida é Do androids dream of electric sheep? (traduzido no Brasil como O caçador de andróides), levado para o cinema como Blade runner – O caçador de andróides, com direção de Ridley Scott.
Philip K. Dick, que teve vida difícil, envolvido com drogas quase todo o tempo, é uma metáfora do presente projetada no futuro. Blade runner discute não apenas a emergência dos clones, os “replicantes”, como sua humanidade. São criações que emergiram na fronteira da ciência e dividem opiniões de filósofos como Jürgen Habermas, um dos mais importantes do pós-guerra, cientistas e bioéticos. Dick é a prova clara da ficção científica como história possível do futuro, em oposição à idéia, no mínimo desinformada, de uma literatura de segunda categoria.

Descobrir a ficção científica pelo universo de Philip K. Dick é um privilégio, mesmo com certo custo emocional. Suas incursões não são exatamente a demonstração de fé no futuro. O homem do castelo alto, de leitura absolutamente imperdível, por muitas e diferentes razões, foi reeditado no ano passado pela Aleph, que este ano publicou Valis. Já a Rocco lançou, também este ano, O homem duplo. E é possível encontrar em sebos o pouco conhecido A identidade perdida numa edição não muito boa, feita pela Brasiliense, em 1986.


Outra ausência na coletânea de Arthur Clarke é Ray Bradbury. Se você ler a introdução de A sonda do tempo, um texto saboroso e tão interessante quanto outros escritos de Clarke, talvez entenda por que isso aconteceu. De qualquer maneira, Bradbury é outro autor imprescindível. Sua obra mais conhecida certamente é o belo Os frutos dourados do Sol e publicado pela Francisco Alves. Sua leitura é o bastante para demonstrar a amplitude da ficção científica, pois essa é uma obra quase lírica, sem cientificismos e futurismos que caracterizam boa parte da produção do gênero.


Talvez valha a pena dizer que Bradbury, que também transita pelo policial, é um autor que oscila se comparado, digamos, a Philip K. Dick ou ao próprio Clarke. Sua obra mais recente publicada aqui, Algo sinistro vem por aí, que saiu no ano passado pela Bertrand Brasil, não atinge, por exemplo, a qualidade de Os frutos dourados do Sol.
Isaac Asimov (1920-1992), que participa de A sonda do tempo com “Não é a última palavra...!”, é fundamental em qualquer menção à ficção científica. Asimov ficou famoso por muitas de suas obras, especialmente por Três leis da robótica ou pela série Nós robôs. Ao lado de Arthur Clarke e Robert Heinlein, integra o que já foi chamado de “grande trio” de sua geração. Asimov escreveu nada menos que 500 livros incluindo textos de divulgação científica.


De todos os escritores de ficção científica, talvez Asimov seja o mais conhecido, tanto no Brasil quanto no exterior, certamente por sua alta produtividade e por ter escrito sobre questões básicas de ciência, tirando partido de sua formação em bioquímica. Em 1984, a Francisco Alves publicou o seu No mundo da ficção científica, um verdadeiro manual sobre esse gênero. Ao longo de 415 páginas, Asimov conta toda a trajetória da ficção científica e dá boas sugestões de como se tornar um autor nessa área.


Asimov também apresentou sua seleção de autores em O melhor da ficção científica do século XIX, que saiu em 1988 pela Melhoramentos. Aí estão todos os clássicos para um interessado nas raízes da ficção científica, o que inclui de Mary Shelley, a autora de Frankenstein, a Edgar Allan Poe e até um inesperado Jack London, com o conto “Mil mortes”.


Evidentemente, um texto sobre ficção científica deveria falar mais detalhadamente de autores como Robert Heinlein e, pelo menos, de sua obra mais conhecida, Um estranho numa terra estranha. Heinlein é um autor confessadamente influenciado por predecessores como H. G. Wells, autor de A máquina do tempo, e Edgard Rice Burroughs, o criador de Tarzan que deixou discípulos como Larry Niven – a quem Arthur Clarke considerava seu escritor favorito – e o ensaísta e jornalista Jerry Pournelle, na geração que o sucedeu. Um estranho numa terra estranha está disponível numa edição brasileira pela Record.


Um pequeno crime não falar de Stanislaw Lem, especialmente de Solaris. Outro clássico que chega agora às livrarias é Viagem à Lua, de Cyrano de Bergerac, pela Globo. Bergerac – que acrescentou esse sobrenome posteriormente – remete a uma linhagem de autores envolvidos com viagens lunares, caso de Luciano de Samósata, o primeiro deles, sem falar do físico-matemático alemão Johannes Kepler, que escreveu Sonho ou astronomia da Lua, publicado em 1634, e mesmo Júlio Verne com Da Terra à Lua e Viagem ao redor da Lua, publicado em capítulos pelo Journal des Débats a partir de 1865.


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